BRASÍLIA - O relatório final da Comissão Nacional da
Verdade (CNV), apresentado no Palácio do Planalto nesta quarta-feira, recomenda
a revogação parcial da Lei da Anistia para punir torturadores e outros agentes
públicos e privados que cometeram graves violações de direitos humanos. Não é
uma recomendação unânime. O conselheiro José Paulo Cavalcanti discordou dos
colegas, lembrando que em 2010 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter
a validade da lei. Para seus cinco pares, porém, a norma é incompatível com
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. "A racionalidade da Corte
Interamericana é clara: leis de autoanistia constituem ilícito internacional;
perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às
vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do
Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações de direitos
humanos", diz trecho do relatório. No discurso da presidente Dilma Rousseff durante o evento para a entrega do
relatório, no entanto, ela faz uma defesa dos pactos políticos tratados por
genereais e oposição, e defendeu a
manutenção da Lei da Anistia.
Segundo o documento, todos os generais que se tornaram
presidentes da República durante a ditadura militar (1964-1985) são
responsáveis pelas violações de direitos humanos. Após dois anos e sete meses de
trabalho, a CNV responsabiliza ainda todos os ministros do Exército, da Marinha
e da Aeronáutica do período, além dos chefes do Serviço Nacional de Informação
(SNI). Ao todo, a comissão listou 377 pessoas, das quais 359 atuaram durante a
ditadura. Os outros 18 são de anos anteriores, uma vez que a CNV, embora com
foco na ditadura, analisou o período que vai de 1946 a 1988.
Os presidentes Humberto Castello Branco (1964-1967), Arthur
da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto
Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985) foram enquadrados numa das
três listas elaboradas pela CNV apontando os responsáveis pelas graves
violações de direitos humanos. Nessa lista, com 53 nomes, estão os militares
que, segundo a comissão, tinham "responsabilidade político-institucional
pela instituição e manutenção de estruturas e procedimentos destinados à
prática de graves violações de direitos humanos".
"As graves violações de direitos humanos ocorridas
entre 1964 e 1985 decorreram de modo sistemático da formulação e implementação
do arcabouço normativo e repressivo idealizado pela ditadura militar com o
expresso objetivo de neutralizar e eliminar indivíduos ou grupos considerados
como ameaça à ordem interna", conclui a CNV, acrescentando: "No âmbito
de cadeias de comando solidamente estruturadas, esses agentes estiveram
ordenados em escalões sucessivos, por vínculo de autoridade, até o comando
máximo da Presidência da República e dos ministérios militares".
Os três comandantes das Forças Armadas que governaram
provisoriamente em 1969 após o afastamento de Costa e Silva - Aurélio de Lyra
Tavares (Exército), Augusto Harmann Rademaker Grunewald (Marinha) e Márcio de
Souza e Mello (Aeronáutica) - também estão na lista. Além dos ministros das
Três Forças e dos chefes do Centro Nacional de Informação (CNI), os chefes dos
centros de informação do Exército (CIE), da Marinha (Cenimar) e da Aeronáutica
(Cisa) foram incluídos.
Civis responsabilizados
Uma outra lista, com 258 nomes, mostra quem teve
responsabilidade pela autoria direta de condutas que ocasionaram graves
violações de direitos humanos, ou seja, quem fez o trabalho sujo. Os civis são
mais comuns nesse grupo, embora os militares ainda predominem. São 114 civis
(44,2%), principalmente policiais e médicos-legistas.
A outra lista elaborada, com 88 nomes, dos quais 14 são
civis, é um meio-termo entre as duas anteriores, englobando aqueles que têm
"responsabilidade pela gestão de estruturas e condução de procedimentos
destinados à prática de graves violações de direitos humanos". Estão nesse
rol, por exemplo, os comandantes das unidades das Forças Armadas e dos
Destacamentos de Operações de Informações/Centros de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI), chefes de departamentos e delegacias de ordem política e
social (DOPS), delegados de Polícia Civil, diplomatas, entre outros. A soma das
três listas é superior ao total porque alguns nomes se repetem.
Punição para agentes da ditadura
Para sustentar a recomendação de revogação da Lei de
Anistia, a CNV citou o direito internacional e uma decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que, em 2010, entendeu que a norma é
incompatível com Convenção Americana sobre Direitos Humanos. "A
racionalidade da Corte Interamericana é clara: leis de autoanistia constituem
ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça
continuada, impedindo às vítimas e a seus familiares o acesso à justiça, em
direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar
graves violações de direitos humanos", diz trecho do relatório.
Em outro ponto, argumenta: "A CNV considerou que a
extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e
arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de
cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica
internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que
foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não
passíveis de anistia".
Reconhecimento da responsabilidade das Forças Armadas
Em suas conclusões, a CNV diz que "está perfeitamente
configurada a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e de
tortura, assim como o cometimento de execuções, desaparecimentos forçados e
ocultação de cadáveres por agentes do Estado brasileiro". Assim, diz que é
falsa a alegação das Forças Armadas de que "as graves violações de
direitos humanos se constituíram em alguns poucos atos isolados ou excessos,
gerados pelo voluntarismo de alguns poucos militares".
Assim, uma das recomendações, a primeira feita no
relatório, é para que as Forças reconheçam sua responsabilidade institucional.
Outra recomendação é retificar a anotação da causa de morte no atestado de
óbito de pessoas mortas na ditadura. A CNV também recomenda a cassação de
honrarias concedidas a agente públicos ou particulares associados às graves
violações de direitos humanos, e a mudança do nome de logradouros que
homenageiem esses agentes.
"A CNV constatou que a prática de detenções ilegais e
arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de
cadáveres por agentes do Estado durante a ditadura militar caracterizou o
cometimento de crimes contra a humanidade", diz outro trecho do relatório.
A CNV, porém, não é clara sobre o período em que diz que as violações foram
sistemáticas. Uma vez que afirma que as graves violações de direitos humanos
ocorreram no período analisado, entre 1946 e 1988, em especial durante a
ditadura militar (entre 1964 e 1985). Destacou também que, ainda hoje, persiste
o quadro de graves violações de direitos humanos, "embora não ocorra mais
em um contexto de repressão política".
Ressarcimento dos cofres públicos
Para ressarcir os gastos do Estado com indenizações às
vítimas do regime, a CNV recomenda que sejam apresentadas ações administrativas
e judiciais contra os agentes responsáveis por violações de direitos humanos.
Outra recomendação é a proibição de eventos oficiais em comemoração ao golpe.
Entre as recomendações que afetam as Forças Armadas e as
forças de segurança pública está a desmilitarização da polícia, unificando as
forças policiais existentes. Também recomenda mudança nos concursos de ingresso
e nos processos de avaliação interna, para valorizar os conhecimentos sobre
direitos humanos e democracia. Além disso, propõe mudar o conteúdo curricular
das academias militares e policiais, com o mesmo objetivo. A CNV também propõe
desvincular os institutos médicos legais e órgãos de perícia criminal das
secretarias de segurança pública e da Polícia Civil. Pede ainda a extinção da
Justiça militar estadual, hoje existente em São Paulo, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul. Quanto à Justiça Militar Federal, recomenda a exclusão de civis
de sua jurisdição, "verdadeira anomalia que subsiste da ditadura
militar".
No campo legislativo, a CNV recomenda revogar a Lei de
Segurança Nacional, de 1983, que "foi adotada ainda na ditadura militar e
reflete as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a
1985". Outra recomendação é a supressão na legislação de referências
discriminatórias da homossexualidade. Como exemplo, a CNV cita o artigo 235 do
Código Penal Militar, intitulado "pederastia ou outro ato de
libidinagem", que prevê detenção de seis meses a um ano. Propõe também a
alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de
resistência à prisão, muito usado pela polícia para mascarar execuções.
Entre as recomendações da CNV, há uma que abre caminho para
a incorporação de arquivos privados: "Nos termos da legislação vigente,
devem ser considerados de interesse público e social os arquivos privados de
empresas e de pessoas naturais que possam contribuir para o aprofundamento da
investigação sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no
Brasil". Apesar disso, Paulo Sérgio Pinheiro, negou que isso signifique
confisco.- Há muitos arquivos privados que são importantes para várias coisas
do nosso grupo. A recomendação não tenho de cor, mas nunca falaríamos em confisco
- disse Pinheiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário